O médico como paciente
Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro
• Doutora em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da FMUSP;
• Chefe da enfermaria masculina do Instituto de Psiquiatria HCFMUSP;
• Supervisora de médicos residentes de psiquiatria do IPQ. HCFMUSP;
• Membro do Grupo de Interconsultas do IPQ. HCFMUSP.
O médico como paciente
Ser médico neste período, na virada do milênio, tornou-se mais difícil. Uma quantidade maior de conhecimentos, um aumento das exigências técnicas, um perfeccionismo tecnológico e um raciocínio lógico e ágil capaz de subsidiar decisões e condutas tem mudado o contexto da prática da Medicina. Ressaltando, ainda, o aumento das exigências sociais e a exploração do trabalho do médico pelo sistema de saúde, sendo esperado uma relação gentil e cordial. O médico deve propiciar um clima de segurança e confiança aos pacientes, além de terapêuticas cada vez mais eficazes.
A imagem do médico idealizada como um benfeitor da humanidade, dotado de características de filantropia, de renúncia, comparado ao “sacerdócio”, deixando seus próprios interesses em prol dos pacientes, tem sofrido um rude golpe à medida que ocorrem mudanças sociais. As condições de trabalho se mostram piores, submetendo o médico a duras jornadas de trabalho, com salários vis, que dificultam a própria sobrevivência.
O mundo está se tornando mais saudável, e a melhora da saúde da população se deve ao fato do trabalho dos médicos e do avanço tecnológico, mas ironicamente os médicos continuam a agir contra seus próprios interesses. Em 1886, Ogle mostrou num estudo que médicos tinham maior risco de terem: cirrose, acidentes e envenenamentos. Ano após ano, na verdade mais de um século, trabalhos apresentados no 153rd Annual Meeting - American Psychiatric Association, em 2000, em Chicago - EUA, revelaram que médicos têm maior risco de terem: depressão, suicídio, alcoolismo, abuso de substâncias. Todas as doenças podem ocorrer em médicos, mas há uma super-representação nas doenças afetivas (depressão unipolar e bipolar), dependência do álcool e outras substâncias psicoativas, conflitos de orientação sexual (AIDS), distúrbios alimentares (anorexia em estudantes e residentes do sexo feminino), quadros demenciais e de delirium. Entre as doenças físicas têm maior riscos as doenças cardiocirculatórias, doenças relacionadas ao abuso de álcool, nicotina e outras drogas e neoplasias.
Muitos pessoas ficam alarmadas ao saber que seu médico sucumbiu a uma doença. Parece que médicos existem para tratar das pessoas doentes e, portanto, estão simplesmente proibidos de ficar doentes. Relembrando um adágio popular: “Duas coisas me custa crer, religioso pecar e médico adoecer .” Ambos, o religioso (padre, pastor, rabino) e o médico, são seres humanos, e mesmo imbuídos dos seus respectivos papéis acabam por apresentar as “falhas humanas”.
É comum o médico, diante de alguns sintomas, fazer consultas com amigos especialistas, pessoalmente ou por telefone, muitas vezes, sem mencionar que o paciente dos sintomas descritos é ele mesmo. Assim, medica-se por orientações ou sugestões de colegas que desconhecem estar diante do próprio paciente. O mesmo para alunos de Medicina que indagam a seus professores sobre informações de determinadas doenças de um “tio ou vizinho” e na verdade, são autoconsultas. A pessoa (médico e ou aluno) começa o discurso na terceira pessoa, e gradativamente passa a utilizar a primeira pessoa, mas não se colocam na posição de necessitar de ajuda, pois isto “parece” denegrir sua imagem.
O estar doente não é meramente um estado do organismo e/ou personalidade, mas sim um papel institucionalizado. Algumas pessoas podem recusar-se a aceitar esse papel e comportar-se como se nada fosse problema. Parterson usou o neologismo “hipercondria” para designar o tipo de pessoa que ao invés de exagerar estados de doenças, vai para o extremo oposto e minimiza-os, ressaltando que há muitas pessoas assim; segundo esse autor, freqüentemente encontram-se médicos que, ao adoecer, minimizam seus sintomas, sinais, sofrendo portanto de hipercondria.
O ritual de transição social do adoecer, de modo simples, pode, assim, ser observado: o status social inicial da pessoa sadia é perdido no momento que ela assume ou lhe atribuem o papel de doente. Para o médico, nesse momento, é perdido, também, o papel da pessoa que cura, passando a ter de entrar em contato com sua “ferida”. Segundo o Mito de Esculápio, este aprendeu com Chiron a conhecer os poderes medicinais das ervas existentes no vale em que moravam. O detalhe trágico é que Chiron tinha uma ferida, provocada pela flecha envenenada, que era incurável. Evidencia-se, assim, o paradoxo do mistério da CURA: aquele que está sempre curando permanece eternamente doente ou ferido (Groesbeck, 1983).
A respeito da formação médica alguns pontos fundamentais merecem reflexão por parte do próprio médico, dos quais destacam-se: a escolha da profissão e sua especialidade; o contato com o cadáver; o contato com a pessoa doente; o contato com a própria enfermidade; o contato com o colega enfermo. Esses pontos fundamentais têm um denominador comum: "O médico é humano".
A razão da escolha da Medicina como carreira pode por si ser imatura. Anos de introspecção serão talvez necessários para compreender completamente as motivações de uma pessoa. O desejo universal de imortalidade nos faz idealizar um ser onipotente capaz de retardar, deter ou mesmo anular a ameaça de morte. A este ser idealizado, Simon chamou de “ser tanatolítico” e ao conjunto de ações mágicas que lhe são atribuídas, de “complexo tanatolítico”. Entre as motivações para a escolha da profissão da carreira médica, segundo ele, o “complexo tanatolítico” influi fortemente. O perigo a que se expõe o estudante de Medicina e, principalmente, o médico no exercício profissional é o de fazer uma identificação total entre seu eu e o “ser tanatolítico”, assumindo compromissos onipotentes. O médico por ser ativo, ambicioso, competitivo, entusiasta e individualista, facilmente é frustrado diante da realidade.
O hospital é a instituição marcada pela luta constante entre a vida e a morte. Nele estão as esperanças de melhora, de cura, de minimizar ou suprimir o sofrimento, mas também está a marca da morte, sempre alerta e presente, numa batalha constante diante das condutas terapêuticas. O profissional de saúde está preparado para a cura, mas freqüentemente angustiado pela morte. Frente aos limites da realidade acaba sendo facilmente frustado em suas necessidades de realização e reconhecimento, isto pode ser suficiente para produzir: ansiedade, depressão, somatização, hipocondria, abuso de álcool e outras drogas, podendo culminar com suicídio.
Merecem atenção, as tendências materialistas que acreditamos existir entre os médicos, pois a morte lhes é familiar, em todas as suas formas, além de terem o meio do suicídio ao alcance das mãos.
A publicação do AMA-Council On Scientific Affairs (JAMA; 1987) apresentou algumas hipóteses em relação ao comportamento dos médicos que cometem suicídio:
1. Manifestam especial vulnerabilidade ou experiências de eventos circunstanciais diferentes (recente perda profissional ou pessoal, problemas financeiros ou de licença) em relação aos outros médicos;
2. Tendem a trabalhar mais horas que os outros colegas;
3. Tendem a abusar de álcool e outras drogas;
4. Estão mais insatisfeitos com suas carreiras médicas que outros médicos;
5. Dão sinais de aviso da intenção de suicidar-se a outros;
6. Têm desordem mental e emocional com mais freqüência;
7. Tiveram dificuldades na infância e seus problemas familiares são comuns;
8. Automedicam-se mais freqüentemente que os outros colegas.
O uso de um método para suicídio está intimamente relacionado com sua disponibilidade, aceitação cultural e letalidade. A ingestão excessiva de drogas é uma forma de suicídio muito aceita culturalmente, sendo os medicamentos, principalmente os psicofármacos, utilizados na maioria dos suicídios de médicos.
A letalidade dos métodos e a disponibilidade destes são fatores determinantes do resultado (êxito ou não) e da freqüência dos auto- envenenamentos, respectivamente. A população geral, em sua maioria, desconhece o grau de letalidade das drogas (medicamentosas ou não). O conhecimento farmacológico que o médico possui, torna qualquer tentativa de suicídio altamente letal, associado ao uso abusivo de drogas e álcool nessa população, confirmado pelo elevado índice de cirrose entre médicos. Esforços precisam ser feitos para melhorar o diagnóstico, a terapêutica e a prevenção no que diz respeito aos médicos que fazem gestos ou tentativas de suicídio, muitas vezes com sucesso.
Os preceitos: "O médico é frio, distante, forte e saudável" e " O médico sabe cuidar de si mesmo", são falsos. Em realidade, há um outro ainda sobre o médico, que é, muitas vezes, verdadeiro: "O médico é o pior paciente". Esses preceitos persistem e acompanham toda a existência da pessoa do médico, sem que nenhum tipo de atenção especial e particular lhe seja dado.
Quando um paciente se apresenta com queixa de dor de cabeça, o médico, partindo desse sintoma, vai formular as principais hipóteses diagnósticas. E será feito esse mesmo raciocínio para todos os pacientes ou casos clínicos apresentados ao médico. Até o dia em que ele tem “aquela” dor de cabeça.! Ele vai formular uma série de hipóteses diagnósticas e pode ter certeza de que ele vai parar naquele tumor inoperável, não sensível à quimioterapia, não responsível à radioterapia. Assim, o uso errôneo do conhecimento, isto é, um desvio do raciocínio diagnóstico, voltado quase sempre para o pior prognóstico, toma conta de muitas pessoas e com maior freqüência da pessoa do médico enfermo, talvez pelo fato de o médico ter estudado todos os dias do ano, durante seis a nove anos, pela manhã, à tarde e à noite as patologias humanas. São tantas as patologias, apresentadas de forma maciça como uma terapia intensiva, que parece ser impossível que o médico consiga ficar imune, no seu autodiagnóstico, a escolher a pior delas.
A experiência de dezesseis anos no Grupo de Interconsultas Psiquiátricas do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP, como supervisora de médicos residentes de Psiquiatria, levou-me a observar, no atendimento dos pacientes médicos internados no Complexo do Hospital das Clínicas - FMUSP que seu relacionamento com os profissionais que os atendiam estava permeado de complicações não comuns a pacientes não-médicos (Meleiro, 1995). Oitenta por cento desses profissionais mencionaram a dificuldade em tratar o paciente médico (relação médico X paciente-médico).
Algumas questões podem ser levantadas neste momento para melhor compreensão desses fatos: - Será que as atitudes, percepções, expectativas do paciente-médico internado dificultam essa relação? - Será a rigidez do paciente-médico em aceitar o papel de doente ? - Será a dificuldade do médico em lidar com o colega enfermo (espelho)?
Vários desses aspectos foram abordados no filme que vale a pena ser visto por todo médico: Um golpe do destino (“Sick doctor”) com o brilhante ator Willian Hurt no papel do médico Jack Mackee. Esse filme mostra como é a reação de um famoso cirurgião que, por força do destino, se vê na situação de paciente e apresenta uma experiência que certamente enriqueceria qualquer currículo médico. Para o doutor Jack Mackee ela se traduz em uma lição de vida. O convívio com outros pacientes em igual condição o faz despertar para a importância do afeto e da compaixão, alterando radicalmente seu comportamento como médico. Um filme elogiado pela crítica pela história emocionante que é retratada com doses exatas de sensibilidade e de bom humor.
Será que todos os médicos ante o adoecer comportam-se como foi mostrado no filme ? Será que para todos há um final feliz? Essas e inúmeras outras questões dos aspectos inapropriados e deficientes no relacionamento terapêutico entre o paciente-médico e o colega que o trata colaboram para as dificuldades desse relacionamento e , conseqüentemente, para uma evolução desfavorável da doença. Duas décadas após ter sido despertado meu interesse sobre o médico como paciente, resultou numa aproximação mais do que um afastamento, nas minhas atividades diárias, da pessoa do médico. Assim, estudar o médico diante do seu próprio adoecer foi, como ponto de partida, o tema do meu estudo.
Com o objetivo de estudar o comportamento (percepções, expectativas e atitudes) dos pacientes-médicos em regime de internação hospitalar quanto aos aspectos de sua doença cardíaca, sua relação com o colega médico que o assiste e a equipe paramédica, comparativamente com outros pacientes de nível universitário, mas que diferiam quanto aos conhecimentos sobre Medicina. Optei por escolher advogados e engenheiros. As três profissões então estudadas, representando as áreas de Ciências Humanas, Médicas e Exatas, são consideradas as primeiras e principais opções da carreira de quem pensa em ter nível universitário, além de genericamente seus profissionais serem tratados todos de “Doutor”.
Esses objetivos tiveram por finalidade avaliar se esses comportamentos levam o médico, quando internado em um hospital, a tornar-se um paciente mais difícil de ser tratado do que outros pacientes de mesmo grau de instrução, e se um número maior de complicações clínicas acompanha o médico quando este se torna paciente dentro do contexto acima referido. A amostra foi constituída de pacientes internados no Instituto do Coração - INCOR-HCFMUSP (Brasil) no período de 01 de novembro de 1994 a 30 de junho de 1995. Foram entrevistados 61 médicos, 76 advogados e 66 engenheiros internados, todos com alguma patologia cardíaca. Foi realizada uma entrevista semi-estruturada, além de terem sido aplicadas as escalas para avaliar as funções cognitivas, a depressão e a ansiedade e um conjunto de questões de auto-avaliação elaborado pela autora desta pesquisa.
Os resultados mostraram que os médicos não diferiram estatisticamente dos advogados e engenheiros em alguns pontos: na atividade de trabalho mantida; no tempo de tratamento e de internação no Instituto do Coração; no tipo de internação (convênio, particular ou Sistema Único de Saúde); nas condições de alta após 48 horas de internação; nos diagnósticos cardiológicos principais; nos procedimentos cirúrgicos; nas funções cognitivas; nas pontuações de depressão e de ansiedade; no uso de bebidas alcóolicas e de nicotina. Os médicos também não diferiram quanto à negligência dos cuidados com: diabetes, nível pressórico, hipercolesterolemia, tabagismo, alcoolismo.
Entretanto, os médicos diferiram estatisticamente dos advogados e engenheiros em alguns aspectos do processo do adoecer: motivaram-se menos para mudar suas vidas após a doença; ficaram mais ansiosos e irritados com o fato de estar doentes; não se preocuparam em ser bons pacientes; referiram maior satisfação com os cuidados da equipe de enfermagem; desaprovaram a condução do tratamento médico; confiaram menos na prescrição médica, seguindo-a pouco; preocuparam-se com os efeitos colaterais dos medicamentos, e menos com os efeitos benéficos; declararam gostar de ser informados sobre a medicação prescrita; tinham o hábito de tomar remédios por conta própria (auto-medicação) com maior freqüência antes da internação; valorizaram pouco a atitude dos médicos em sua melhora. Vinte pacientes foram excluídos do estudo. Entre eles, o óbito nas primeiras 48 horas de admissão no Instituto do Coração, foi a razão para exclusão de cinco médicos, um advogado (nenhum engenheiro), além de dois outros médicos terem entrado em coma nas primeiras 72 horas da internação, evoluindo para óbito. Esses pacientes-médicos, conforme contato telefônico com a família, demoraram a procurar auxílio, chegando ao hospital com um grau de gravidade maior. Conclui-se que os médicos entrevistados, com um referencial diferente por ter (ou pensar ter) profundos conhecimentos na área médica, enfrentaram o processo de eles próprios adoecerem com características diversas em relação à população universitária estudada, sendo assim pacientes especiais e mais exigentes: apresentaram grande dificuldade de sair da posição vertical (de profissionais) para a posição horizontal (de pacientes). Dentro da população estudada ficou configurado ser o médico o pior paciente para ser tratado quando internado.
Geralmente a equipe hospitalar trata o paciente-médico diferentemente dos demais, como se ele tivesse de ser protegido pela mudança de “status”, evidenciando que no meio de pessoas do Setor de Saúde há uma certa dificuldade em aceitar o médico como pessoa que pode adoecer e necessitar ser hospitalizado.
Freqüentemente o médico dedicado trata de seus pacientes valorosamente, mas ignora sua própria dor, desconforto e exaustão. Opta por automedicar-se em casa com remédios para doenças autodiagnosticadas, e pode ter dificuldade em revelar esse fato posteriormente quando procurar um colega. Quando admite a sua doença e vai procurar um profissional, fica geralmente envergonhado, como se tivesse falhado. De outro lado, sente-se culpado por ter de deixar sua tarefa para outro colega sem aviso prévio (ambulatório, leitos de hospitais para evoluir). O mito e a crença de que médicos são imunes a doenças está por toda parte.
O médico tem dificuldade em procurar ajuda e, por vezes, defronta-se com um profissional que não se sente à vontade para indagar sobre todos os sintomas, inclusive sobre problemas confidenciais, que poderão influenciar no diagnóstico. O paciente-médico acaba oferecendo o seu próprio diagnóstico, em vez de seus sintomas, que sofrem uma grande distorção. O resultado é a tradicional consulta superficial, com um relato breve e minimizado do problema, dando origem a diagnósticos também superficiais e, consequentemente, a tratamento inadequado. A automedicação é uma opção fácil mas pode resultar em tratamento inadequado e em doença iatropatogênica, isto é, AUTO-IATROPATOGÊNICA. A condição de paciente especial age em detrimento dele próprio.
O médico quando fica doente adia sua visita ao colega, hesita mais que a maioria das pessoas em buscar auxílio adequado. Dois motivos básicos merecem destaque: 1- O saber das implicações assustadoras e fatídicas de seus sintomas (uso errôneo do seu próprio conhecimento) leva a negar sua significação ou a depreciá-los o maior tempo possível. 2- O orgulho profissional faz com que o médico julgue que deveria estar apto a diagnosticar sua própria enfermidade e dela tratar: imagens irreais e idealizadas do supermédico onipotente, que não dependerá de ninguém para auxiliá-lo.
Quando finalmente procura um colega, o paciente-médico deprecia os próprios sintomas: menciona-os de passagem, nos corredores, por telefone, ou desculpando-se por estar incomodando. Embora se faça de forte e dê a impressão de que é uma consulta superficial não se oferecendo explicitamente como paciente, ele está tão preocupado, como qualquer outro paciente, sobre sua condição, precisando de cuidados e de assistência médica.O paciente-médico geralmente oferece um diagnóstico ou para facilitar o colega, ou para mostrar que, apesar de ser ou não da especialidade, sabe fazer seu próprio diagnóstico. A questão dos hononários (o médico não precisa pagar) e do orgulho profissional pode impedi-lo de solicitar instruções mais específicas e uma atenção continuada durante o curso da doença.
O médico doente pode ter uma atitude crítica quanto à consulta, ao exame físico realizado (ou não), ao tratamento proposto e discordar da prescrição do colega, desmerecendo-a.
Quando internado, pode comportar-se como paciente “VIP”, apelando para escalões mais altos do quadro médico e exigindo tratamento especial, favorecendo uma reação de evitação por parte de toda a equipe (médicos, enfermagem, etc). Ele sentirá que foi abandonado. Ninguém assume a responsabilidade de tratá-lo como paciente.
É mais indicado que o profissional que irá cuidar do médico doente não seja de seu departamento ou hospital. Todas as facetas da personalidade, alterações e condutas que envolvem comportamento devem ser investigadas no médico em sofrimento, e conscientizá-lo de que ele é realmente o paciente.
O médico é e deve ser um educador. A educação é fundamental para o êxito do tratamento de inúmeras doenças. Todo paciente e também o colega enfermo têm direito a receber educação informativa adaptada à sua capacidade e à circunstância em que se encontram. O médico, individualmente, e/ou sua equipe devem implementar um programa contínuo de ensinamento - aprendizagem para que esteja atualizado em cada consulta, dando prioridade a certos objetivos.
Os colegas que tratam de pacientes-médicos tendem a acreditar que estes sabem, de forma excepcional, como lidar com a doença em si mesmos, com a medicação e com a própria evolução da doença. A falsa idéia de que o médico pode lidar melhor com a própria doença pode levar o colega consultante a ter vários comportamentos: fazer uma discussão intelectual da doença, como se os sintomas não fossem da pessoa que está à sua frente; fazer comentários sobre outros pacientes com o colega enfermo, solicitando opinião, tirando dúvidas sobre a especialidade do médico enfermo; não assessorar a família, por achar que o próprio colega sabe fazê-lo.
A pessoa do médico, quando enferma, necessita de amparo. A demonstração arrogante de conhecimentos técnicos e científicos por parte do colega consultante amplia a aflição e a ansiedade no médico enfermo, geradas pela impotência diante da doença. Observem o relato de uma médica internada no Instituto Central do Hospital das Clínicas, em 1996:
“... sabe o que mais me cansa nessa história? É ter que fazer o papel de médico e paciente ao mesmo tempo; desde que eu adoeci não pude dizer: “Assistente me abraça! Eu estou com medo!”... Eu converso com o Assistente como se estivesse falando da senhora do leito 9, e não de mim, da minha própria doença, da minha própria morte”.
Por palavras como estas, fica evidenciado que o paciente-médico deve ser tratado pela equipe de Saúde, incluindo o colega que o atende, de forma indiferenciada, como todas as pessoas. Deve-se tratar o paciente-médico como pessoa que está tentando lidar com o fato de estar doente, procurando melhorar seu moral e sua auto-estima, deixando-o extravasar seus sentimentos. Cuidar de um médico apresenta muitos desafios e o maior deles parece ser tratá-lo como paciente, apesar de seu conhecimento científico.
Muitos pensam que o melhor exemplo que os médicos podem dar é o próprio. Pelo voto que fizeram e a licença que obtiveram, os médicos se comprometeram a ser o modelo na prescrição e no uso de drogas. Como pode o médico ser modelo se, como ser humano que é, seu raciocínio científico se contamina e empobrece por interferências emocionais, em busca de um controle mágico e onipotente?
Como escreveu Birolini (1993):
"Talvez algum dia o médico venha a ser dispensável. Haverá "inteligência artificial" capaz de ser mais elástica, mais discriminativa, mais paciente e mais persistente que a mente humana. E, principalmente, menos exigente, por não precisar dormir, alimentar-se, vestir-se, criar família, educar filhos, enfim, viver".
Acredito que aqui poderia ser incluído: “o não se contaminar emocionalmente, o não se estressar diante do sofrimento, da dor e da morte do próximo, o não adoecer e o não morrer”.
Nossa classe deve tornar-se mais sensível às dificuldades existentes em tratar de um médico-enfermo e mais apta a reconhecer “o pedido de ajuda” de um colega e o próprio, sem contudo deixar de zelar pelos interesses do público. A morte precoce de um médico é um desperdício de recurso humano.
Sugestão de leitura: “O Médico como Paciente”.
Autora: Alexandrina Meleiro
Editora Lemos Editorial, 1999.